sábado, 5 de setembro de 2009

AS AMARRAS IMPEDITIVAS





Para compreender certas manifestações artísticas é preciso se desvencilhar das amarras


Nessa última semana, fui ver O Anticristo, novo filme de Lars Von Trier, diretor dinamarquês dos elogiados Dogville e Dançando no Escuro e criador do Dogma 95. O filme, polêmico desde a produção, está bem avaliado pela crítica especializada, mas, mesmo entre os mais politizados, tem causado certa repugnância por ser, dizem, pesado demais, apelativo e alguns acusam o diretor de ser sexista. De fato, são várias cenas “fortes”. Já era de se imaginar que, se a mão de Von Trier era pesada fazendo dramas políticos, no gênero terror uma acentuação de tal característica provavelmente iria ocorrer. E esse é o filme: câmera na mão, atuações profundas e cenas penetrantes.


Aviso que quem for assistir ao filme verá sexo explícito, aborto animal e automutilação. Devo crer que só a presença de um desses elementos já afastaria muita gente da sala de cinema. E caso muitos fossem ver, é fácil dizer que choveriam exclamações do tipo “Nossa, que horror!”, “Pra quê isso?”, “Olha, achei péssimo, como você me indica um filme desses?!“. Enfim, frases do tipo tia-avó descontextualizada. Na verdade, esse tipo de manifestação muitas vezes revela uma dificuldade de compreensão ou, talvez mais precisamente, uma dificuldade de aceitação para com o que é mostrado. E o grande problema é que, cada vez mais, percebe-se que “não entender é meio passo para não gostar”, o que é lamentável. Por que uma cena de sexo explícito tem que durar 11 minutos? Por que tem que mostrar o sangue? Existe isso? (essa é uma das piores).


Filmes como O Anticristo e tantos outros não são filmes fáceis. Costumam ser difíceis de digerir, densos e constantemente incomodam a plateia – no caso do gênero terror (e horror), um dos objetivos é justamente esse; incomodar. No entanto, incomodar mera e simplesmente dificilmente faz um grande filme ou uma grande ideia. Afinal, pra quê ir ao cinema simplesmente para se sentir mal? O “x” da questão é que quase sempre há um sentido para o incômodo. A arte muitas vezes representa pensamentos, acontecimentos, e estados de espírito de diversas formas: metaforização, hipérboles, analogias com o fantástico, sinédoques etc. Por que às vezes é difícil que elas sejam assimiladas? Porque muitas são extremas e destoam do que estamos acostumados a ver. Pronto, caímos na velha discussão sobre a dificuldade de entender o que é diferente.


Não conseguimos aceitar - e consequentemente entender- certas coisas porque estamos presos às amarras impeditivas.


Amarra é igual a “rabo preso”, que não existe apenas no mundo administrativo e político, mas também no campo intelectual ou ideológico. Ter uma filiação partidária é também um exemplo de amarra ideológica, por exemplo. Ser de outra época pode se tornar uma amarra caso a pessoa em questão não consiga abrir os olhos para os novos tempos. O fanatismo, o gosto por coisas determinadas, o desgosto pelo resto e o preconceito são outros exemplos. Qualquer tipo de ligação de caráter inabalável com algo, como ter uma religião ou uma crença inatingível, também é uma baita amarra.


Vejam, não estou dizendo que ninguém pode ser religioso, militante partidário ou gostar apenas de rock. Apenas exponho esses elementos para exemplificar a maneira como as pessoas são facilmente situadas num campo e se prendem a ele. Nesse sentido, tais elementos funcionam como “algemas”, impedindo que horizontes distintos se expandam. Situações do dia-a-dia servem de amostra: para um metaleiro, um cd classificado como forró é pior do que o classificado como Heavy Metal, mesmo sem que ele conheça ambos. Se eu pedir a um islâmico para que leia o livro de Richard Dawkins, é bem provável que ele me deseje os mármores do inferno só ao ler o título : Deus, um delírio.


Explicando melhor, não sou contra correntes, até porque estou preso a diversas delas. Sou, sim, contra correntes inquebráveis. Se nossa conexão com alguma coisa é impossível de ser desfeita, tendemos a tratar o oposto ou o diverso como o “errado”. Isso acontece frequentemente na nossa relação com a Arte, ao assistirmos, por exemplo, um filme que nos mostra coisas estranhas, longes do nosso universo, como é o caso de O Anticristo.
Exibo duas frases com significâncias extremamente relacionadas com o assunto:



"Uma pessoa para compreender tem de se transformar."
( Antoine De Saint Exupery )


"Temos de renunciar ao mundo para o compreender."
( Jean Grenier )




É isso. Para entender, temos que aceitar e para aceitar temos que nos desvencilhar de algumas amarras. Após esse processo, aí sim podemos exercer melhor o esperado julgamento do “gostei ou não gostei”. Do contrário, se estivermos sempre presos a algo, a aceitação inexiste, ou ocorre de forma forçada. Não reconhecendo e procurando entender o diferente, não se estabelece o diálogo. E sem diálogo não há produção de conhecimento.

10 comentários:

Gabriel R.M. disse...

Concordo com o sr. em vários aspéctos e discordo com os mesmos assuntos em outros casos. É o grande "depende". Há coisas que devem ser experimentadas e vistas para saber se gostamos ou não, se aceitamos ou não. Mas há assuntos que creio que não seja necessário conhecer o oposto. Sabendo-se o "certo e correto" não implica em ter de conhecer o errado.
Mas, voltando ao seu levantamento do filme, acho errado alguém ir ver o filme e, ao se deparar com essas cenas, achar um absurdo pelos seguinte motivos:
1 - qualquer jornal já "difamou" tudo que ocorre no filme (os que forem e ficarem surpresos provam que são completos desatualizados);
2 - o nome O Anticristo somado à época - presumo - "difama" o que está para vir.
É possível que eu ache outros motivos se pensar mais, mas isso aí tá bão.
Em outras palavras: acha errado, por crença, ver cenas de sexo explícito etc., não vá. Tem vontade de conhecer de tudo sem limites independente de estar certo ou errado (na concepção do que tem crença), vá - mas não reclame (ou volta a ser o desatualizado).
Também acho banal o argumento de não ter gostado ser o não entendimento completo. Se fosse assim, Roberto Juliano teria odiado Os Lusíadas.

Cláudio disse...

Ivan, parabéns pelo texto. Antes de tudo, está bem escrito. Concordo com muito do que você disse. Só acho que a essência do seu argumento já seria suficiente, você poderia ter tratado o filme em outro post.

Com todo o respeito ao Gabriel R.M., tenho duas discordâncias graves em relação ao discurso dele, apesar de também concordar com algumas coisas.

1) Sobre não ser necessário conhecer o oposto = Primeiramente, creio que a maioria das coisas, principalmente a Arte, não podem ser divididas em certo ou errado. Supondo que existisse esse maniqueísmo; só o fato de ser uma dualidade já implica em gradação. Ou seja, se constata-se o certo - e outra questão pertinente seria "Quem define o que é certo?"- é porque outro nível( o "errado") foi conhecido e comparado. É lógica básica!

2) Quanto à banalidade do argumento do "conhecer para julgar" = Não li no texto que o "não ter gostado é o não entendimento completo", e sim que temos que nos soltar do que nos amarra, caso isso impeça de alguma forma nossa aceitação, 1º passo no processo do entendimento. Não posso comentar o exemplo porque, desculpem a ignorância, não sei quem é esse Roberto Juliano, mas me parece claro que só se pode gostar ou odiar algo após conhecê-lo. E concordo com o Ivan quando ele diz que muitos recusam ou desgostam por não terem "sacado" a obra. Isso acontece muito em filmes repletos de referências, que não necessariamente são reconhecidas por todos.

Gabriel R.M. disse...

Talvez eu tenha me expressado mal.
Deixe-me tentar ser mais claro.
Quanto ao "não é necessário conhecer o oposto", refiro-me a questões de dogmas ou ética social (e do meio que se vive).
Pelo ponto de vista de um policial (e de muitos da sociedade), por exemplo, é totalmente errado usar drogas. Então ele conhece um lado "certo": não usar drogas. Ele não precisa experimentar a droga para saber se está errado ou certo.
Para algumas religiões, o uso da camisinha é banal assim como o sexo antes do casamento. Esses não precisam dormir com alguém antes do casamento para dizerem: "Ah! De fato é errado (ou certo)".
O que quis dizer no meu comentário é que depende do assunto. Quanto a arte, sim, completa ignorância daquele que diz "só gosto de Heavy Metal, só gosto de Chimbinha, só gosto de Velozes e Furiosos etc."
Quanto ao assunto da arte, cabeça abertíssima. Mas, no caso desses que tem ligações com "padrões maiores" - por exemplo um religioso - ele acha errado essas cenas e não vai. Na visão dele o que acontece: isso está indo contra o que acho maior que a arte. Não devemos o chamar de ignorante.
Caso ele diga "não gosto de forró e só ouvi Frank Agiar, aí chama que eu apoio o chamar de imbecil". Um padrão de "amarra", deixa eu ver se isso esclaresse meu argumento, não pode atacar um padrão superior e mais importante pra ela. Lógico, tem-se que ter bons argumentos para dizer que uma "amarra" é mais importante para explicar o ato de não querer conhecer; dizer "não quero ver O Anticristo porque eu não gosto do tipo de filme e sou mais o tipo O Crepúsculo, é baboseira."

CRIS disse...

As obras de Arte, como formas de expressão, estão aí .Não devem sofrer censura e cabe à pessoa escolher se quer ver ou não , se quer romper as "amarras " ou não.O que pode ser um desafio para alguns , pode ser simples para outros .Não creio ser necessário "renunciar ao mundo " para ter compreensão e sim a história de cada um o faz ter uma compreensão à sua maneira.Não existe a verdadeira compreensão assim como não existe o certo e o errado em Arte (concordando com o Claudio )

Edu disse...

Legal o post! Concordo um pouco com todos!

Acho que, como a Cris disse, a pessoa pode não querer romper as "amarras". É o que parece que o Gabriel está querendo dizer quando fala de Dogma. Mesmo assim, seja por qual motivo for, a amarra continua impedindo o "diálogo" e, por consequência, segundo o Ivan, o conhecimento!

Ivan Oliveira disse...

Clau, o Roberto Juliano foi nosso(meu e do Gabriel) professor no cursinho. E, assim como Roberto Juliano, a Chris também disse algo importante: nunca há um entendimento completo da arte.

O próprio Juliano se cansou de dizer que muitos não entendiam Sagarana, de Guimarães Rosa, porque não "desciam do pedestal", ou seja, não conseguiam superar o fato de que o Sertão é outro mundo, diferente do nosso, onde reinam outros valores e linguajares. Para ele, o aluno que conseguisse entender isso - admitir o outro - iria se deliciar com a história. Parece com a frase de Jean Grenier, que diz para "renunciarmos ao mundo".

Temos aqui prontamente uma diversidade de opiniões colocadas. O Gelada, por exemplo, tocou num assunto muito polêmico ao colocar a expressão "padrões maiores" e o Clau disse algo importantíssimo a respeito obras que contenham referências nem sempre assimiladas. Isso acaba de acontecer comigo ao ver um filme lotado de citações.

Ivan Oliveira disse...

A ética social é uma convenção de caráter simbólico. Muitas pessoas sabem que drogas fazem mal ao corpo e à mente, e não as usam por acreditarem na Ciência, que comprova tais malefícios. No entanto, ingerimos substâncias tão ou mais prejudiciais no nosso lanchinho do tarde, no nosso almoço fast food ou na bolacha recheada lotada do pior tipo de colesterol. Isso nos diz que não é só a ciência, e sim uma ocasião de valores que, talvez hipocritamente, vieram desde tempos antigos.

No caso de julgamentos a respeito da Arte e qualquer outro tipo de escolha na qual somos livres para decidir, as amarras continuam agindo.

Para decidirmos a respeito de padrões a seguir, gostos e julgamentos, uma coisa é essencial: análise crítica.

Aderir ao 1º padrão que surge ou ao 1º ritmo que parece agradável é recusar ver o todo. É como se o delegado ouvisse apenas uma testemunha ou a corretora de vestibular lesse apenas uma redação.

Cláudio disse...

É isso aí!

Não acho que a lógica do conhecimento seja só para a Arte e sim para diversas outras coisas.

Gabriel R.M., você fala em "padrões superiores". Para reconhecer tal superioridade - e esta geralmente é uma decisão individual - também é necessário já ter aberto um leque de possibilidades ou pelo menos pensado nelas com disposição.

E se uma crença ou um dogma religioso impede que a pessoa tenha contato com certas manifestações, essa crença ( "padrão superior") é, propriamente nesse aspecto, prejudicial à essa pessoa, pois acaba impedindo que ela se aproxime daquele âmbito de conhecimento.

Isso acontece muito na Arte, mas não só. O maior exemplo de "amarra" religiosa é o esquema de castas do hinduísmo: " se nasci pobre, é porque Deus quis e temos que respeitar". Outro exemplo desse tipo de amarra são os discursos medievais do Papa que, em plena explosão da Aids, vai ao continente africando e fala contra a camisinha.

Completos absurdos, mais "algema" impossível.

Anônimo disse...

Caro Ivan Oliveira, não sei qual sua formação, porém acredito, deva ser um crítico de arte. Fantástico o seu texto, sobretudo suas comparações. Li a respeito do filme, porém , confesso que a vontade de assiti-lo veio agora, com seus comentários. Parabéns!!!
Carlos Eduardo ( Pernambuco)

Ivan Oliveira disse...

Carlos Eduardo, não sou um crítico de arte. Pelo menos não ainda!

Muito obrigado pelos elogios e principalmente pela visita.

Volte sempre!