segunda-feira, 7 de setembro de 2009

AS AMARRAS IMPEDITIVAS - 2ª PARTE




Coincidências incríveis têm acontecido ultimamente. O último post gerou diversos comentários, que julguei muito construtivos. No domingo, fui ver UP, da Pixar, e me deparei com um filme repleto de referências à história do cinema, muitas das quais não reconheci por não ter visto os filmes. A obra da Pixar, já cotada por muitos como o melhor filme do ano até então, é o tipo de filmes para todas as idades, mas com qualidade inimaginável. Bem, o filme merecerá um post exclusivo mais tarde. Só quero salientar que o caráter polissêmico de UP é responsável por uma apreciação geral, independente da idade. Mesmo assim, não captei muitas das referências.

O outro fato incrivelmente relacionado ao post anterior foi a coluna de Marcelo Gleiser, no caderno Mais, da Folha de S. Paulo. Geralmente leio este caderno por último. Primeiro pelo fato de trazer pautas frias (matérias não necessariamente relacionadas ao que está acontecendo) e segundo por ter uma linguagem mais rebuscada e sofisticação dos temas.

Bem, chega de papo. Para acrescentar a tudo que já foi dito por mim e pelos ilustres visitantes desse blog no post abaixo, exponho, na íntegra, o texto de Marcelo Gleiser:


+Marcelo Gleiser

Ciência e liberdade


Nunca se deve aceitar algo só porque foi dito por uma autoridade


Já que esta coluna cai na véspera do dia da Independência, achei oportuno revisitar um tema que está sempre presente na vida da gente: a questão da liberdade. Claro que, nestas breves linhas, eu não teria a pretensão de apresentar muitos pensamentos profundos sobre o que significa ser livre. Convido apenas os leitores a uma reflexão, iluminados, como sempre, pela luz da ciência.

Quando era garoto, gostava muito de citar a seguinte frase: "Ser livre é poder escolher ao que se prender". Outra versão é: "Quanto mais chaves você carrega no bolso, menos livre você é". Não há dúvida de que a primeira é mais filosófica. (Acho que é atribuída, talvez erroneamente, ao filósofo francês Jean-Paul Sartre.) Mas ambas dizem algo de semelhante: que liberdade e escolha andam de mãos dadas.

Existem, certamente, situações em que isso não é verdade: pessoas "presas" não por terem cometido algum crime, mas por serem aprisionadas por alguma ideologia que lhes é imposta. Por exemplo, as crianças que nascem em famílias ultrarreligiosas nunca têm a opção de refletir sobre os valores que lhes são impostos. Mesmo sem carregar chaves, estão presas até crescerem o suficiente para poder (ou não) se rebelar. O mesmo ocorre com os indivíduos que vivem em regimes políticos totalitários, onde a "verdade" é controlada pelo Estado.

Ou seja, a frase "ser livre é poder escolher ao que se prender" pressupõe que o indivíduo tem a liberdade de escolha. Isso nem sempre é verdade. Para sermos livres, precisamos ter livre acesso à informação. Só assim teremos o privilégio de poder escolher ao que vamos nos prender.

Daí o papel fundamental da educação, contanto que livre de censuras ideológicas. Já em torno de 50 a.C., o poeta romano Lucrécio celebrava a importância da educação na liberdade das pessoas. Sua preocupação era com a excessiva superstição dos romanos, que atribuíam tudo o que ocorria à ação de algum deus. Consequentemente, a maioria da população vivia aterrorizada. Só aqueles que usam a razão para desvendar o porquê das coisas podem de fato ser livres, dizia.

Só quem reflete sobre as causas das coisas, em vez de atribuí-las cegamente a causas sobrenaturais, é livre dos medos que assombram a vida. A educação deve fornecer ao indivíduo a capacidade de reflexão crítica, a habilidade de saber fazer perguntas e não de aceitar passivamente tudo o que lhe é dito. Essa habilidade, esse ceticismo, é um dos aspectos mais cruciais do treinamento de um cientista. Nunca se deve aceitar algo só porque foi dito por uma autoridade.

Essa atitude é exatamente oposta ao que ocorre em culturas conservadoras e repressivas. Mesmo que a ciência busque uma ordem no mundo material, sua essência é anárquica. Os grandes revolucionários da ciência, Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Einstein, Bohr, foram todos anárquicos a seu modo. Todos defendiam a sua liberdade de pensamento acima de tudo, recusando-se (ou quase, no caso de Galileu, sob ameaça da Inquisição) a aceitar o saber das autoridades. Para eles, ser livre é ter a coragem de pensar por si mesmo sobre os grandes problemas, na tentativa de chegar a uma verdade aceita pela maioria.

Quando penso em liberdade, penso nesses nomes, e em tantos outros -cientistas ou não- que lutaram para que hoje possamos ter a visão de mundo que temos. Se hoje somos mais livres, devemos agradecer a eles. Se há tantos longe de ser livres, é porque ainda temos muito o que fazer.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"


[ artigo publicado na Folha de S. Paulo de 06/09/2009, caderno Mais]

5 comentários:

Gabriel R.M. disse...

Interessante que em qualquer aspecto há maneiras de "ser livre" (no caso de repensar o que a autoridade diz).
Como o Gleiser sitou a Inquisição, lembrei-me desse tempo de lutas religiosas e me veio à cabeça Lutero.
Até na religião (que é visto como uma amarra por si só), ele, Martinho, questionou a autoridade e mostrou que o que vinha sendo moído na cabeça dos "fiéis" era algemador.

Edu disse...

Tá aí! Boas referências e um texto circunstancialmente excelente!

Claudio disse...

Putz, sou fã do Marcelo Gleiser também!



Gabriel R.M., gostaria de te perguntar uma coisa. Por favor, desculpe-me se ficar ofendido ou achar uma invasão pessoal.

Você é de alguma religião protestante?

Gabriel R.M. disse...

De forma alguma, Claudio.
Sim, sou.

Claudio disse...

Tá, achei que era mesmo!